Máquina

A cidade dos Engenhoqueiros de Lamnor

Depois que a Aliança Negra tomou o reino de Lenórien e finalmente dominou o continente sul de Arton, Lamnor passou a ser uma espécie de império goblinóide, dominado pelo general Bugbear Twor Ironfist. Durante muitos anos, o grande exército avançou destruindo e conquistando uma a uma as cidades e reinos que surgiam pelo caminho, apropriando-se delas.

A própria Lenórien agora jaz sob o comando das feras, que profanam o solo onde outrora se erguia a suntuosa cidade élfica. O mesmo destino teve a cidade de Deaneira, construída sobre o platô de uma montanha ao redor de uma torre onde, em outros tempos, viveu uma bruxa de grande poder. As altas paliçadas resistiram com bravura a passagem do exército invasor, mas seus portões não foram tão bem sucedidos, e Deaneira sucumbiu.

Diferente de outras cidades humanas, Deaneira não foi simplesmente dominada e abandonada. Por se encontrar em uma área estratégica importante e por possuir uma visão privilegiada do continente sul, especialmente do istmo que o liga a Ramnor, ela foi entregue ao então Major Kireus, um goblin que, na tomada da cidade costeira de Torinar, perdeu uma de suas pernas em combate, e a substituiu por outra, movida por um complicado mecanismo de engrenagens e vapor. Se não fosse pela fumaça que brota da pequena caldeira, alimentada por um fino pó de madeira e dos sons estridentes que todas as engrenagens produzem, sua nova perna quase poderia se passar por um membro normal.

Kireus sempre foi muito ligado á mecanismos. Desde muito pequeno, criava pequenas engenhocas movidas a vapor e armas, que expeliam fogo, alimentadas pela pólvora. Tornou-se major de um pequeno batalhão quando, em uma inspeção de rotina, mantida por hobgoblins de confiança do próprio general, apresentou um canhão construído por ele que era capaz de atirar duas vezes mais longe e com três vezes mais força do que as melhores catapultas do exército.

Da mesma forma, quando Deaneira sucumbiu, ele se ofereceu para construir, no topo da grande torre, um canhão capaz de abalroar qualquer exército que tentasse cruzar o istmo, mesmo estando a quase seis quilômetros dali. Concederam-lhe a chance. Se obtivesse êxito dentro de seis meses, se tornaria regente da cidade, caso não fosse capaz de atingir tal distância, seria morto. Kireus confiava em suas habilidades mecânicas, e não se deixou abater pelo desafio. Iniciou no
mesmo dia os projetos para o canhão.

Atingir a meta de seis quilômetros logo se mostrou extremamente difícil. No primeiro teste, no ângulo de quarenta e cinco graus, atirando com pólvora suficiente para explodir a própria montanha, o projétil foi arremessado a uma distancia de apenas dois quilômetros e meio. Com o recuo da arma, que havia sido ignorado por Kireus, toda a torre veio abaixo, reerguendo-se magicamente logo em seguida. O som da explosão pode ser ouvido até em Khalifor, se não além.
Percebendo que não poderia contar apenas com os estúpidos orcs como mão de obra, enviou um edital a todos os grandes acampamentos goblinóides dali até os confins do continente, convocando qualquer um que provasse possuir capacidade de construir alguma engenhoca mecânica. Ele só não contava com tantos candidatos.

Mais de cinqüenta mil goblins de todos os cantos de Lamnor mostraram-se interessados em abandonar a linha de frente do combate para se lançar no projeto do novo canhão. Por dez dias chegaram, trazendo consigo carroças com todo tipo de bugiganga, cada um com uma idéia própria e diferente para surpreender o major.

Mas no que sobrava disposição e boas idéias, faltava talento.

Os orcs foram realocados para trabalhar nas minas de ferro no subsolo da montanha, e os goblins se instalaram nas casas onde antes residia o povo de Deaneira. Cada um deles desejava criar a máquina mais impressionante, visando atrair para si a atenção de Kireus, que a esta altura era tratado como um ávatar do próprio Ragnar. Os estranhos cidadãos vagavam pelas ruas montados em máquinas rudimentares, que lembravam carruagens, mas sem cavalos, ou planavam a pequenas alturas, para em pouco precipitarem em queda livre pelas paliçadas que cercavam
a cidade.

Foram construídos elevadores para trazer o ferro até a superfície, não tardando para que os mesmos fossem instalados nas residências, muito mais práticos do que as antigas escadas. O ritmo de trabalho era tão intenso que foram criadas lâmpadas geradoras de luz, para não interrompê-lo durante a noite. Era comum encontrar goblins adormecidos nas ruas, por sobre seus projetos. Nos subsolos escavados pelos orcs, onde antes havia rocha, agora fervilhava vida. Centenas de goblins trabalhando em máquinas para transportar minério, elevadores mecânicos
de carga, escadas rolantes, e até um sistema de transporte coletivo, que corria sobre trilhos, movido a vapor. Foram instalados sistemas para envio e recebimento de mensagens, respiradouros e exaustores nas minas, esteiras e máquinas que, por uma moeda de cobre, forneciam uma pasta esverdeada muito nutritiva, mas de sabor duvidoso e água trazida do subsolo. Tudo extremamente barulhento e soltando fumaça por todos os lados. Quando não explodiam.

Mas o projeto mor estava no grande canhão, no topo da torre, que agora já se tornara um grande emaranhado de fios, cabos e canos, somando mais de três toneladas de ferro e madeira, por sobre uma plataforma giratória, com um sistema de recuo controlado por pistões a vapor, carregador automático de pólvora e projéteis e um resfriador alimentado por um sistema que bombeava a água das minas no subsolo até o topo. Tudo havia sido calculado, e Kireus estava pronto
para o segundo e decisivo teste.

Cinco meses e vinte e nove dias já haviam se passado desde que iniciara a obra, e o desmoronamento ocorrido há três meses na primeira tentativa quase pôs tudo a perder. Não fosse a torre se reerguer magicamente, não conseguiria reconstruir tudo a tempo, porém não ousou testar o mecanismo novamente. Se por acaso não atingisse a distancia, aproveitaria a fumaça da explosão e sumiria pelo continente. Com sorte chegaria até Ramnor. Com mais sorte ainda, morreria embaixo de alguma rocha solta numa possível nova queda da torre e não seria torturado pelos hobgoblins.

No primeiro dia do sexto mês, os faróis da grande cidade se voltaram para os portões, que se abriam mecanicamente devido a um engenhoso sistema de pesos, para a entrada do próprio general. Dentro em breve se iniciaria a conquista de Khalifor, e dali em diante, seria preciso proteger o território já conquistado de invasores do norte, o canhão servia bem aos planos do bugbear. Sobre uma carruagem sem cavalos, subiu pelas ruas iluminadas de Deaneira até o topo da cidade, aos pés da grande torre. As chaminés soltavam uma fumaça negra e pesada, que corria pelo chão como neblina. O pequeno Kireus que mal chegava nos joelhos do bugbear a seu lado tremia quando deu ordem para que o canhão fosse acionado.

Um alvo de palha foi erguido a exatos seis quilômetros dali. A esta distância, a estrutura de mais de trinta metros de altura era apenas um pequeno ponto no horizonte. O ângulo do canhão foi ajustado, e o sistema de mira desenvolvido por Kireus corrigiu o desvio que o vento causaria no projétil. Os instrumentos de medição eram operados cirurgicamente pelo goblinóide, a perna fazendo mais barulho do que o normal, incentivado pelos tremores que lhe percorriam o corpo.

O gatilho foi acionado. O clarão causado pelo estouro da pólvora logo foi eclipsado pela fumaça que escorria pelo cano. O tiro forçou a estrutura para trás, mas o sistema de recuo a vapor mostrou-se satisfatório, apitando e guinchando, segurou com bravura o poder do tiro. Logo que a arma voltou ao seu ponto de origem, um mecanismo iniciou a recarga enquanto a água escorria pelo metal que chegava tranqüilamente aos duzentos graus logo após o estalo. Por longos cinco minutos ninguém conseguia enxergar nada além das paliçadas da cidade, que estava envolta em fumaça e vapor. Quando finalmente cederam, o alvo estava destruído.

Kireus conseguiu.

Atualmente, além de uma das grandes forças de defesa do continente, Máquina é um pólo cientifico, até onde isto se aplica a um goblin. É o mundo dos sonhos de qualquer inventor, pois, tudo pode ser posto em prática na cidade, que dispões de vários laboratórios, além de uma comunidade cientifica” invejável, pode ser tentado. Os devaneios de Kireus se aplicaram por um bom tempo, na construção de um novo sistema de defesa da cidade, que conta com toda a sorte de armadilhas mecânicas, acionadas por pesos, molas ou vapor, tornando-a uma fortaleza quase
intransponível, pois mesmo as armadilhas que por vezes não funcionam, acabam por atrasar invasores simplesmente explodindo.

Há cerca de duas semanas, Kireus anunciou seu novo projeto a comunidade goblinóide de Deaneira, que a aprovou com aplausos e urros. Iniciou-se a construção de oito pernas mecânicas, tão grandes que é possível viver dentro delas. Sua idéia não poderia ser mais lógica, pelo menos para um engenhoqueiro como ele. Dentro de pouco tempo, seu grande canhão se faria necessário nas batalhas que se seguiriam contra os reinos do norte, e então, porque não aproximar sua cidade de onde ela seria necessária? Claro, havia o risco da montanha inteira ruir, mas, não. Melhor não cogitar este tipo de coisa.


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